quarta-feira, 26 de março de 2014

BATALHA ESPIRITUAL

Quatro Princípios Bíblicos para se Entender a Batalha Espiritual

(Esse material encontra-se em fase de revisão e aparecerá em sua forma final como um dos capítulos do livro "Neopentecostalismo" da Comissão Permanente de Doutrina da Igreja Presbiteriana do Brasil)

Introdução
As igrejas históricas do mundo todo têm sido desafiadas nestas últimas três décadas a dar respostas às ênfases de um movimento dentro das suas fileiras que ficou conhecido como "movimento de ‘batalha espiritual’". O nome em si já sugere do que se trata: é um movimento cuja ênfase maior é na luta da Igreja de Cristo contra Satanás e seus demônios, conflito este de natureza espiritual, quanto aos métodos, armas, estratégias e objetivos.
Esse crescente interesse em círculos evangélicos por Satanás, demônios, espíritos malignos, e o misterioso mundo dos anjos, corresponde ao surto de misticismo atual, um interesse crescente no mundo nos dias de hoje pelos anjos maus e bons, e pelo oculto. Mas não somente no mundo, dentro da própria igreja cristã assistimos o crescimento vertiginoso da busca pelo miraculoso e sobrenatural, na esteira do neopentecostalismo. Por neopentecostalismo quero dizer aqueles movimentos surgidos em décadas recentes, que são desdobramentos do pentecostalismo clássico do início do século, mas que abandonaram algumas de suas ênfases características e adquiriram marcas próprias, como ênfase em revelações diretas, curas, batalha espiritual, e particularmente uma maneira de encarar a realidade espiritual.
Esse movimento é caracterizado por uma leitura das Escrituras e da realidade sempre em termos da ação sobrenatural de Deus. Deus é percebido somente em termos de sua ação extraordinária. Assim, para o neopentecostal típico, Deus o guia na vida diária através de impulsos, sonhos, visões, palavras proféticas, e dá soluções aos seus problemas sempre de forma miraculosa, como libertações, livramentos, exorcismos e curas. A doutrina que caracteriza, mais que qualquer outra, as igrejas evangélicas no Brasil hoje, é a crença em milagres. É claro que não estou dizendo que crer em milagres seja errado. O que estou dizendo é que, na hora em que a crença em milagres contemporâneos e diários passa a ser a característica maior da igreja
evangélica, algo está errado.
A hermenêutica sobrenaturalista do neopentecostalismo representa um desafio para a uma das doutrinas típicas da tradição reformada, que é a providência de Deus. Partindo das Escrituras, os reformados usam o termo providência para se referir à ação de Deus, pelo seu Espírito, agindo no mundo através de pessoas e circunstâncias da vida para atingir seus propósitos. Esses meios não são intervenções miraculosas ou extraordinárias de Deus na vida humana, mas simplesmente meios naturais secundários. Os calvinistas reconhecem que Deus intervém miraculosamente neste mundo, mas sempre em regime de exceção. Normalmente, ele age através dos meios naturais.
O neopentecostalismo, por enfatizar a ação sobrenatural e miraculosa de Deus no mundo (a qual não negamos, diga-se), acaba por negligenciar a importância da operação do Espírito Santo através de meios secundários e naturais. Essa negligência torna-se mais séria quando nos conscientizamos que o Espírito normalmente trabalha através de meios secundários e naturais para salvar os pecadores. Acredito não ser difícil de provar que a esmagadora maioria dos cristãos foram salvos através de meios naturais – como o testemunho de alguém, a leitura da Bíblia, a pregação da Palavra – e não através de intervenções miraculosas e extraordinárias, como foi a conversão de Paulo.
Como resultado do sobrenaturalismo neopentecostal, as igrejas reformadas por ele afetadas tendem a considerar os meios naturais como sendo espiritualmente inferiores. Um bom exemplo é a tendência de considerar o tomar remédios como falta de fé por parte do crente adoentado. Um outro resultado é a diminuição da pregação do Evangelho como meio de salvação dos pecadores, e a ênfase na realização de como meio evangelístico. Assim, a obra do Espírito na Igreja e no mundo através dos meios naturais secundários é negligenciada, com graves e perniciosos efeitos nas vidas dos que abraçam a cosmovisão neopentecostal.
As consequências desta maneira de ver a realidade espiritual são sérias para a área do conflito da igreja contra as hostes das trevas, pois a concebe apenas em termos do sobrenatural, negligenciando o ensino bíblico de que Satanás procura atingir a Igreja de Cristo através da carne e do mundo – meios que não são necessariamente sobrenaturais.
Conquanto devamos dar as boas vindas a todo e qualquer movimento na Igreja que venha nos ajudar a melhor nos preparar para enfrentar os ataques das hostes malignas contra a Igreja, este movimento polêmico tem trazido algumas preocupações sérias a pastores, estudiosos e líderes evangélicos no mundo todo, não somente das igrejas evangélicas históricas, como até mesmo de igrejas pentecostais clássicas.(1) Mesmo organizações internacionais, como o Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, têm expressado suas
preocupações com os ensinos deste movimento, numa declaração do seu Grupo de Trabalho feita em 1993, em Londres.(2) 
Existem várias razões para essa preocupação. Uma delas é que o movimento, onde tem ganhado a adesão de pastores e comunidades, tem produzido um tipo de cristianismo em que a atividade satânica se tornou o centro e mesmo a razão de ser da existência destes ministérios e igrejas. Nestes casos, embora geralmente as doutrinas fundamentais da fé cristã não tenham sido negadas (há exceções), elas são, via de regra, relegadas a plano secundário, desaparecendo do ensino e da liturgia. O que resulta é um cristianismo distorcido, deformado, onde doutrinas como a salvação pela fé somente, mediante o sacrifício redentor, único e expiatório de Cristo. A doutrina da pessoa de Cristo, sua mediação e ofícios, e doutrinas como a da
queda, da depravação do homem, da santificação progressiva mediante os meios de graça, são negligenciadas. Não é que estas igrejas e os proponentes do movimento neguem necessariamente estes pontos; mas certamente não lhes dão a ênfase necessária e devidas, que recebem nas próprias Escrituras.
O fato é que o movimento de "batalha espiritual" tem produzido o surgimento de novas igrejas (e mesmo denominações) cujo ministério principal é a expulsão de demônios e a "libertação" de crentes e descrentes da opressão demoníaca a todos os níveis (espiritual, moral e física, bem como geográfica, estrutural e social). Mas não somente isto — as idéias e práticas difundidas pelo movimento tem se infiltrado nas igrejas históricas, cativando muitos dos seus pastores, oficiais e membros.
O objetivo desse capítulo é apresentar alguns princípios bíblicos pelos quais os evangélicos em geral, e presbiterianos em particular, poderão orientar sua compreensão acerca de tema tão atual e polêmico.(3).

A Necessidade de Base Bíblica

A melhor maneira de abordarmos assuntos polêmicos é colocá-los dentro de seus contextos maiores. Se tivermos a visão do todo, poderemos com mais exatidão entender suas partes. Por exemplo, uma pessoa que tenta achar um endereço numa cidade simplesmente procurando as placas com o nome das ruas pode acabar desorientada e perdida. Se ela porém tiver um mapa, que lhe dá uma visão mais ampla da área onde ela se encontra, e mostra as ligações entre as ruas, poderá mais facilmente encontrar seu destino. Da mesma forma, quando colocamos o tema do confronto da Igreja com as hostes das trevas dentro de um contexto maior, e percebemos as ligações com outras áreas teológicas, podemos melhor entendê-lo.
Em termos do conhecimento teológico global, o assunto não pertence a uma área somente. Quando falamos da polêmica entre salvação pela fé e/ou pelas obras, facilmente identificamos que o assunto pertence à área de soteriologia, ou seja, o estudo da salvação, uma área da enciclopédia teológica. Se tivermos uma boa compreensão dos princípios e fundamentos que orientam a soteriologia, poderemos mais facilmente entender tudo o que está envolvido nessa polêmica. Mas a luta entre a Igreja e Satanás não se enquadra em uma área somente, muito embora a demonologia bíblica, que por sua vez é um departamento da angelologia, (o estudo dos anjos bons e maus) certamente seja a principal área afim. O fato é que os ensinos e práticas da
"batalha espiritual" levantam questões sérias relacionadas com diversas áreas do nosso conhecimento de Deus.
Quando, por exemplo, alguns dos defensores do movimento falam de Satanás como se fosse um poder independente, autônomo e livre para fazer o mal neste mundo, está indiretamente entrando na área que trata dos decretos de Deus e da sua maneira de governar o mundo. Ainda, quando alguns revelam possuir informações extra bíblicas sobre o mundo invisível dos anjos e demônios – como por exemplo, o nome de determinados demônios e os locais geográficos onde supostamente habitam – está entrando na epistemologia, ou teoria do conhecimento. Essa área trata do modo pelo qual conhecemos as coisas ao nosso redor, inclusive o acesso humano ao conhecimento do mundo espiritual invisível, onde habitam e atuam os seres espirituais como anjos e demônios. Semelhantemente, quando todo tipo de mal que existe no mundo, quer moral ou circunstancial (como doença, dor, desemprego, etc.) é atribuído aos demônios, levanta-se a antiga discussão acerca da origem dos males e sofrimentos neste mundo presente. E quando é dito que os cristãos podem ser possuídos por um espírito maligno (ou ficar demonizados, para usar um termo mais em voga), estamos de volta à soteriologia – ou seja, qual a situação dos salvos diante dos ataques de demônios – e entramos também na cristologia, indagando qual a relação entre a obra vitoriosa e consumada de Cristo e a atividade satânica no presente.
Quando procuramos entender os conceitos da "batalha espiritual" a partir de princípios gerais que controlam as diversas áreas abrangidas pelo tema, poderemos ter alguns trilhos sobre os quais poderemos conduzir o assunto. No que se segue, procuro analisar quatro desses princípios que têm importância fundamental para ele: a soberania de Deus, a suficiência as Escrituras, a queda da raça humana e a suficiência da obra de Cristo. Acredito que se forem compreendidos adequadamente pelos leitores, funcionarão como balizadores seguros pelos quais poderão prosseguir com maior certeza no conflito diário que enfrentamos contra as hostes espirituais da maldade.


Notas
1 Por exemplo, veja-se o livro de Paulo Romeiro, da Assembléia de Deus, Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na Igreja Brasileira (São Paulo: Mundo Cristão, 1995), onde ele faz severas críticas ao movimento.
2 Veja extratos desta declaração em Mike Wakely, "A critical look at a new ‘key’ to evangelization", em Evangelical Missions Quarterly, (Abril, 1995) 156-57.
3 Boa parte do material aqui apresentado apareceu na minha obra, O que Você Precisa Saber sobre Batalha Espiritual (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1997), e é reproduzido aqui com permissão.

Retirado do Ebook: BATALHA ESPIRITUAL - Augustus Nicodemus Lopes

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